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sexta-feira, abril 26, 2024

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Criolo lança “Sobre Viver”, disco marca seu retorno ao rap

Sobre Viver” nasce com a amplidão de um clássico. Não por ser um álbum que remeta a tempos passados e estabelecidos, onde habitam todos os clássicos que conhecemos. Menos ainda por mirar a eternidade do futuro, do que será. Não.

Sobre Viver” nasce com essa dimensão de perenidade justamente por ser um retrato do autor e do mundo que o rodeia ostensivamente amarrado ao presente, ao hoje, ao já. Logo em uma primeira audição, é possível identificar o novo álbum de Criolo como o terceiro capítulo da trilogia aberta no – esse sim – já clássico “Nó na Orelha” (2011) e seguida no posterior “Convoque Seu Buda” (2014). Tão grandioso quanto seus antecessores, “Sobre Viver” chega às plataformas de música em 5 de maio com o mesmo dom para fazer pontes, estabelecer encontros e propor diálogos entre o universo do rap e tantas outras quebradas da música do Brasil e do mundo.

Abraça tanto o Cabo Verde de Mayra Andrade quanto as Minas Gerais de Milton Nascimento, tanto a nobreza erudita do maestro Jaques Morelenbaum quanto a potência do ultra talentoso MC Hariel, a intensidade da diva soul Liniker e o equilíbrio da poeta Maria Vilani, mãe de Criolo. O rap é o princípio de tudo e é ele quem dá a caneta nas dez canções do álbum, mas o som e a musicalidade se desdobram em múltiplas referências, seguindo a vocação dos trabalhos que colocaram Criolo no centro do mapa da música brasileira produzida neste século.

Sobre Viver” começou a ser esboçado há pouco mais de um ano e, por razões autoexplicativas, se chamaria “Diário do Kaos” (com K, de Kleber). Era a reação de Criolo ao Brasil da pandemia e ao emaranhado de tristeza e ódio em que nos enrolamos, à nossa revelia, nesse período sórdido. O mesmo impulso já havia dado forma ao single “Cleane” (2021), dedicado à irmã de Criolo, Cleane Gomes, vítima fatal da covid-19 aos 39 anos.

Não por acaso, ela também é personagem de “Pequenina”, faixa mais autobiográfica de “Sobre Viver”, escrita para a mãe de ambos. “Vocês votaram na morte”, ele rima no monumental “Sétimo Templário”, uma das faixas centrais na construção narrativa do álbum. O racismo é exposto o tempo todo e sob diversos ângulos. “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” diz a que veio já no título-slogan – e Criolo quis que fosse assim sempre, a mensagem às claras e na cara.

Ogum Ogum” aborda o tema pelo viés da intolerância com religiões de matrizes africanas, o mesmo racismo religioso que serve de pano de fundo para “Yemanjá Chegou”. Os temas são reiterados e expandidos o tempo todo, a cada faixa, o que fortalece o roteiro e solidifica o discurso.

O reggae “Moleques São Meninos, Crianças São Também” diz da infância na periferia, “onde o estado não chega, a maldade traça o norte”. E, transformando o caos em sobrevivência, a blues-balada “Diário do Kaos” aponta a libertação por meio da arte, da educação, da música: “Meu rap vai me levar aos confins do mundo pra dizer que só o amor pode te afastar do canhão de um 12, de um tiro, de uma arma, de uma desilusão”. “Aqui quem fala é um sobrevivente”, ele canta com a garganta sufocada. A poesia concentrada nos trinta e tantos minutos de “Sobre Viver” se desenrola em camadas e camadas (leia o faixa-a-faixa escrito pelo próprio Criolo), fazendo deste álbum um dos mais contundentes documentos artísticos do nosso tempo no nosso lugar.

Musicalmente, Criolo usa o álbum para expandir a equipe de produção em núcleos. Daniel Ganjaman, que formatou a sonoridade de Criolo nos trabalhos anteriores, segue no time. Ele está nas faixas “Ogum Ogum” e “Aprendendo a Sobreviver”. “Ogum Ogum” também tem as mãos de outro nome fundamental na trajetória de Criolo, Marcelo Cabral, que dividiu com Ganjaman a produção de “Nó na Orelha” (2011), “Convoque Seu Buda” (2014) e “Espiral de Ilusão” (2017). O próprio Criolo bota a mão na massa em dois momentos: “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão” e “Pequenina”.

São essas as faixas, aliás, que concentram as participações especiais – Milton Nascimento na primeira; Maria Vilani, MC Hariel, Liniker e Jaques Morelenbaum na segunda. Mas a maior parte das músicas ficou sob os cuidados do duo Tropkillaz, formado pelos brasileiros Zegon e Laudz. Isso porque o processo de criação de “Sobre Viver” partiu do encontro de Criolo com os dois produtores, com quem já havia trabalhado nos singles “Sistema Obtuso” (2020) e “Cleane”.

Como vinha de uma série de cinco singles com videoclipes cinematográficos (“Etérea”, por exemplo, passou em quase 50 festivais pelo mundo), toda a parte visual de “Sobre Viver” se pauta pelo minimalismo. Por ora, nenhuma faixa do novo trabalho vai ser desdobrada em clipe. É uma maneira de inverter a lógica e dar maior ênfase à música e às inúmeras interpretações que dela podem provir, nas cabeças dos ouvintes, sem a “viagem guiada” do audiovisual, que acaba levando o espectador por um caminho definido.

Em vez de mil imagens, cada faixa do novo álbum foi vinculada a apenas uma cor. Para chegar aos tons ideais, o diretor criativo Tino Monetti fez uma pesquisa sobre a história das cores, seus significados em diferentes tempos, sociedades, contextos culturais e momentos históricos. Criolo rebatizou todas elas, dando um sobrenome conforme o universo da respectiva canção. “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” é verde grana; “Moleques São Meninos Crianças, São Também” é rosa criança; “Yemanjá Chegou” é azul sereno etc. A direção de arte é de Pedro Inoue. A foto da capa é assinada por Helder Fruteira, com direção de arte de Alma Negrot. A direção geral segue nas mãos de Beatriz Berjeaut.

Assim se dá o diário do caos de Criolo, transformado pela caminhada em um ensaio ultracolorido sobre a sobrevivência. Na maior parte do tempo, em cor de vermelho sangue, é verdade. Mas ele não nos deixa esquecer: sangue também é a cor da vida.

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