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sexta-feira, abril 19, 2024

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DISS: Um fenômeno da indústria da música e da autoafirmação do artista

Nos últimos tempos, não se falou em outra coisa no Rap nacional. Entre diversas opiniões do público e dos artistas, o fenômeno da DISS, renascida através das canções “Sulicídio”, de Baco Exu do Blues & Diomedes Chinaski, “SulTáVivo!”, do Costa Gold, e “Disscarrego”, rapper Nocivo Shomon, causaram um grande impacto e chacoalharam com força a cena.

Várias opiniões foram lançadas na roda, mas a verdade é que a DISS é um fenômeno pouco estudado dentro do Rap Nacional. Minha intenção é trazer alguns elementos importantes para ampliar e compreender melhor esse debate.

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Notorious e Tupac protagonizaram uma das maiores rivalidades simbólicas do hip hop;

Em primeiro lugar, precisamos entender que a DISS não é exclusividade do hip hop. Ela é um subproduto da composição musical, e está presente em diversos gêneros. A origem etimológica da palavra vem de “disrespect” (em inglês) ou “desrespeito”. Dentro da cultura hip hop gringa, esse tipo de treta também é comumente chamada de BEEF ou ROAST BEEF. Se pesquisarmos mais profundamente, músicas de ataque entre os artistas fazem parte da indústria da música há tempos. Bob Marley, James Brown e Frank Zappa são só alguns exemplos dos gigantes que já fizeram ou foram alvos de músicas DISS.

Porém, em nenhum outro gênero a DISS ganhou tanta força e expressividade, quanto no hip hop. Para compreender esse fenômeno, precisamos perceber o contexto histórico em que a rivalidade entre os MC’s aparece com mais força. Estamos falando especificamente dos EUA nos anos 90, década marcada pela chegada do crack nas periferias, pela explosão das doenças sexualmente transmissíveis, pela guerra entre gangues, pela globalização das comunicações através da internet e pela expansão comercial da indústria da música, dominando os meios de comunicação (a MTV é um bom exemplo).

Nesse período, onde o hip hop ainda buscava a consolidação como gênero musical forte dentro da indústria, havia uma dependência muito grande em relação às gravadoras e até mesmo em relação aos recursos e tecnologias para a produção musical, geralmente restrito a uns poucos produtores, gravadoras e artistas. Nesse contexto, com poucos recursos e pouco espaço, a união local e regional era um fator muito determinante para o sucesso dos artistas. O MC era fortalecido por uma rede local de relações, e através de seus contatos, buscava espaço em rádios, gravadoras e casas de show (a internet ainda dava seus primeiros passos).

A dificuldade para acessar a indústria, a disputa local entre gangues, geralmente vinculada ao próprio ambiente de convivo dos artistas, a violência urbana, e o crescimento do hip hop como fenômeno cultural mais amplo e popular, acentuaram a rivalidade entre os MC’s, sendo essa rivalidade um fenômeno paralelo à própria disputa e autoafirmação das regiões de origem de cada artista.

As disputas entre as gravadoras Death Row, da Costa Oeste, e Bad Boy Records, da Costa Leste, foram um marco para o hip hop, devido à histórica competitividade entre seus dois maiores nomes: Notorious BIG, pela Costa Leste, e Tupac, pela Costa Oeste. Tupac, depois de ter sido baleado dentro do estúdio, produziu uma das DISS mais lembradas de todos os tempos, a clássica “Hit’Em Up”, onde ataca Notorious e outros representantes da Costa Leste, com rimas pesadas e muito violentas.

A disputa comercial entre as regiões e as gravadoras, acabou sendo absorvida pela mídia, que enxergou o potencial publicitário por trás dessa rivalidade. As DISS voltaram em diversos momentos para o cenário do hip hop estadunidense, criando competitividade e favorecendo o marketing relacionado ao gênero. Algumas das rivalidades (reais ou não) mais conhecidas são as disputas entre NAS e Jay-Z, 50 Cent e Ja Rule, Ice Cube e NWA, entre várias outras.

No Brasil, o contexto em que surgem essas últimas DISS tem alguma semelhança com os EUA dos anos 90: A explosão do Rap na indústria musical, o fomento do hip hop dentro da cultura popular, a emergência das batalhas de Rua, a expansão das produções locais. Tudo isso colabora para a produção de rivalidades simbólicas, autoafirmação e construção de identidade dos diversos públicos, artistas e regiões.

O fortalecimento da música independente e a internet abriram espaço para a multiplicação dos artistas de Rap de Norte a Sul do país. No entanto, a realidade é que a indústria musical a nível nacional ainda é um ambiente bastante fechado, e bastante centrado na região Sudeste, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. São essas regiões que concentram os maiores recursos de produção e divulgação e os meios de comunicação mais expressivos. Num mercado que se expande cada vez mais, onde o Rap parece se consolidar de vez como o gênero musical do século, a profissionalização e a luta por espaço são inevitáveis.

O Rap, assim como o Funk, virou um grande negócio, girando enormes cifras e movimentando diversos círculos culturais e de comunicação no Brasil. Recentemente a “Sulicídio”, DISS dos nordestinos Baco e Diomedes, atacando diversos artistas do eixo Rio-SP, movimentou a cena e causou bastante tumulto. Pra mim, além das questões de marketing ou da suposta futilidade em se atacar, essa DISS cumpriu uma função social importante, e me fez lembrar algumas outras DISS que exaltam o Rap da região onde o artista está enraizado, como a “Mt.Olympus”, onde o Big Krit responde a “Control”, de Kendrick Lamar.

Na sequência da “Sulicídio”, outros artistas também reinvindicaram o estilo DISS e fizeram lançamentos, alguns inclusive fugindo ao padrão, o que mostra que a DISS é um fênomeno expansivo. Recentemente, Rashid lançou um material bastante interessante e ousado, uma DISS onde o MC ataca a si mesmo, contando sua trajetória e as críticas que sofreu ao longo da carreira.

Por aqui a “Sulicídio” serviu para expor a dificuldade que os artistas de fora do Sudeste estão encontrando em acessar a indústria da música a nível nacional. A DISS acabou ganhando ares de denúncia, e se transformando em oportunidade para o Sudeste investir e ter um olhar mais atento sobre as outras regiões. No meio de tudo isso, parece que o papel da DISS tem sido transformar em arte diversas rivalidades simbólicas, fomentando ainda mais a competitividade (comercial) entre os artistas, expandindo ainda mais a indústria de produção e consumo de Rap no Brasil, e abrindo espaço para grandes talentos.

É preciso compreender a DISS como um fenômeno muito mais relacionado à indústria da música e a autoafirmação e construção de identidade do artista, do que a essência ideológica do hip hop, popular e revolucionário. Com o crescimento do mercado de Rap no Brasil, a tendência é a disputa por espaço e reconhecimento ser cada vez maior, se essa disputa vai trazer mais ou menos qualidade, só o tempo dirá. A única certeza é que o Rap Nacional vive uma ótima fase.

Mais informações:
www.rollingstone.com/music/news/the-10-wildest-rap-beefs-of-all-time
www.bocc.ubi.pt/pag/souza-rose-cultura-hip-hop

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